Sim, somos um casal liberal. E ainda bem

É importante não confundir abertura na relação com relação aberta. O nosso caminho é sempre feito a dois, ainda que na mesma divisão haja mais duas, três ou quatro pessoas.

Há muitos anos, antes de os telemóveis nos manterem sempre conectados e contactáveis, eram as cabines telefónicas que funcionavam como ponto de contacto com quem estava distante enquanto andávamos na rua. E quem viveu nesse Portugal do final dos anos 80 e início dos anos 90 do século passado, sabe que a escassez de recursos financeiros levava a que, quase inevitavelmente, uma conversa feita a partir de uma cabine telefónica começasse com a seguinte informação: “pus 20 escudos, quando acabar, acabou”.

Quando acabar, acabou. Ou seja, quando se esgotasse o saldo, a chamada caía e a conversa terminava ali. Ninguém ficava melindrado, não havia dramas. Era o que era.

Foi sempre esta a analogia que marcou a nossa relação. Desde o primeiro dia. Havia uma sensação de necessidade enorme de aproveitar o dia e não pensar no que viria depois, de tal forma que o importante era o presente. O resto, pronto, quando acabar, acabou. Não nos apercebemos, mas este desprendimento permitiu-nos sempre explorar ao máximo a nossa paixão, testar os limites do amor e da amizade e não nos deixar demasiado preocupados com o que era suposto fazermos ou acontecermos.

Apesar de tudo, a vida foi avançando. O amor ficou mais sério, a relação ficou mais forte. O fim da adolescência deu lugar ao início da vida adulta e, em conjunto, fomos partilhando as vitórias e derrotas que o caminho nos atirava. Terminamos cursos, começámos trabalhos, ganhamos independência, saímos debaixo das asas dos nossos pais e fomos viver juntos.

Jusqu’ici, tout va bien… (até aqui tudo bem), como escreveu Mathieu Kassovitz. A vida era boa. No quarto, melhor ainda. Compramos uma versão de bolso do Kama Sutra e experimentamos todas as posições humanamente possíveis de realizar. Vimos filmes eróticos, fomos a cinemas para adultos, fizemos sexo na praia e em todas as divisões da casa. Raro era o dia em que não havia sexo. E cada semana que passava tornava-se mais evidente que era um objetivo comum fazer render ao máximo aqueles 20 escudos da cabine telefónica. Jusqu’ici, tout va bien, pois é Mathieu. Mas o importante não é a queda, é a aterragem.

Ao vermos os nossos amigos e amigas nas suas muitas relações, one night stands e aventuras sexuais de quem não tinha qualquer compromisso, começou a crescer em nós uma preocupação silenciosa que se tornava cada vez mais gritante: como se concilia a vontade de partilhar o resto da vida com outra pessoa com a vontade que as hormonas nos davam de experimentar outros corpos?

Seria injusto dizer que os anos pesavam quando nos referimos a dois miúdos de 20 e poucos anos. Mas ao vermos os nossos amigos e amigas nas suas muitas relações, one night stands e aventuras sexuais de quem não tinha qualquer compromisso, começava a crescer em nós uma preocupação silenciosa que se tornava cada vez mais gritante: como se concilia a vontade de partilhar o resto da vida com outra pessoa com a vontade que as hormonas nos davam de experimentar outros corpos?

A dúvida foi crescendo e quando se tornou um elefante demasiado grande para a nossa pequena sala de 15 metros quadrados não tivemos alternativa a não ser falar do assunto. A continuidade da relação não era sequer uma questão. Mas não podíamos acreditar que qualquer um de nós – com uma libido muito acima do que se pode considerar a média – viveria em paz com a ideia de não ter sexo com outra pessoa além daquela com quem tínhamos perdido a virgindade em nome do amor. A ideia podia ser bonita, na teoria, mas a aplicabilidade prática era nula.

Restava-nos uma de duas saídas. Ir lentamente amargurando num caminho que nos conduziria inevitavelmente à infidelidade. Ou, então, abraçar a ideia de que uma vida liberal não só não tinha de pôr em causa o nosso amor e lealdade, como poderia mesmo reforçá-los. Na conversa que tivemos sobre o tema fomos perentórios: passaríamos a ter uma relação de grande abertura, com espaço para outras pessoas, outros corpos, outras experiências na nossa vida; mas esta nunca seria uma relação aberta. Tudo o que fizéssemos em nome do prazer e da satisfação sexual – tanto de um como do outro – seria feito em conjunto, com os dois presentes no mesmo espaço.

Foi assim que nos tornámos liberais e criámos o Henry e a June, os nossos alter-egos do sexo. O casal que experimenta tudo, que faz tudo e que vai onde for preciso em nome do prazer e do hedonismo. Quando tiramos essa máscara voltamos a ser nós, miminhos e carinhos, enroscados numa manta no sofá, como dois gatos ao sol.

Como Henry e June tornámo-nos rapidamente especialistas em tudo o que era liberal. Começamos pelo swing, claro. Primeiro com conversas online, depois com encontros com outros casais e, por fim, nos clubes, que se tornaram a nossa segunda casa quando o tema era sexo. Conhecíamos os seguranças, as mestres de cerimónias, as meninas do bengaleiro e, claro, os outros casais. Fomos exibicionistas, fomos voyeurs. Estivemos com outros casais, estivemos em trios e em orgias com pessoas quase a perder de vista no nevoeiro do sexo. Sempre juntos, sempre a dois.

Com o passar dos anos, com o aumento da experiência e do dinheiro disponível para fantasias, fomos levando esta relação liberal cada vez mais longe. Ao “quando acabar, acabou”, juntámos uma nova máxima: “há que experimentar tudo, pelo menos uma vez na vida”. E acreditem, que há pouco que ainda não tenhamos experimentado (nem sempre com bons resultados – mas quem nunca acordou com o rabo dorido e envergonhado com o que fez na madrugada anterior que atire a primeira pedra!). Seja o que quer que façamos, ainda hoje, mais de 20 anos depois de termos expulsado aquele elefante da nossa pequena sala, tiramos sempre 15 minutos, para estarmos só os dois a ter sexo, sem outras distrações. Nós chamamos-lhe “debriefing” da noite, mas na verdade é um momento para reforçar os nossos laços com base na forma como nos entregamos a corpos que não são o do outro.

Sim, somos liberais. E isso não só salvou a nossa relação, como a tornou muito mais forte do que alguma vez poderia ter sido. Paradoxalmente, quanto mais sexo temos com outras pessoas, mais gostamos do sexo que temos a dois.

E antes que questionem, sim, temos uma vida normal fora do sexo. Com filhos, casa, cães, IRS e IMI para pagar.

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